Projetos em GD, chamadas públicas de biometano e interesse crescente do setor sucroenergético são alguns dos sinais de que o setor ganha força
O setor de biogás e biometano continua em rota de crescimento, diminuindo a distância entre o mundo real e o potencial de mercado projetado pela Associação Brasileira de Biogás (Abiogás) como de 120,8 milhões de m3 por dia de biogás. Ainda assim há um longo caminho pela frente: em média hoje a geração diária de biogás está em 4,9 milhões m3/dia e em biometano, sua versão purificada para uso como biocombustível, em apenas 350 mil m3/dia.
Em 2020, a Abiogás identificou 69 novas usinas de biogás implementadas no país, a maioria de micro e minigeração distribuída, e metade em propriedades rurais, chegando a 50 MW de capacidade nova acrescentada, elevando a potência total instalada para cerca de 200 MW. Há, no momento, mais de 600 usinas de biogás, englobando as novas unidades de geração distribuída em 2020 e também outras para sistemas de geração térmica (vapor), de eletricidade isoladas da rede, e oito usinas de biometano (o biogás purificado para se tornar biocombustível). No geral, 84% das usinas de biogás geram eletricidade.
Para o Centro Internacional de Energias Renováveis-Biogás, o Cibiogás, que atua no mapeamento de todos os projetos na área, com as novas plantas adicionadas em 2020 houve um aumento aproximado de 34% na produção de biogás, chegando a 1,78 bilhão de metros cúbicos/ano, contra 1,34 bilhão em 2019.
Rafael González, presidente do Cibiogás, destaca que o resultado, mesmo em tempo de baixa na economia por conta da pandemia, tem a ver com o fato de a produção de biogás estar diretamente vinculada com o agronegócio que, ao contrário de outros setores, registrou crescimento. O panorama aumentou a disponibilidade de biomassa para digestão e consequente geração do biogás, sejam eles provenientes de dejetos animais, agrícolas, de agroindústrias ou do setor sucroenergético.
Projetos
A Abiogás identificou, em 2020, sete empreendimentos de destaque. O primeiro foi do grupo Gera, que inaugurou ao longo do ano três projetos de geração distribuída com biogás de aterro: a CGB Três Rios 1, de 1 MW, no município homônimo na região sul do estado fluminense, em operação desde maio de 2020, seguida pela CGB Três Rios 2, uma expansão do empreendimento e funcionando desde outubro também com 1 MW e, por fim, no mesmo mês, a CGB São Pedro, em São Pedro da Aldeia, na região dos Lagos, no Rio, com 1,4 MW, sendo que esta terá a energia compensada na conta da operadora de telecom Vivo.
O segundo destaque em projetos foi a partida, em outubro de 2020, da planta de biogás da Usina Bonfim, da Raízen, de 21 MW, em Guariba (SP), que gera energia a partir do biogás resultante da digestão da vinhaça (na safra) e da torta de filtro (safra e entressafra) da produção sucroalcooleira. Em sociedade com a Geo Energética, a usina foi negociada em leilão regulado em 2016, pelo qual está vendendo 96 mil MWh por ano dos 138 mil MWh de capacidade. O excedente está disponível para contratos no mercado livre.
O terceiro projeto foi da ENC Energy que, em setembro passado, passou a operar em Santana do Paraíso (MG) uma usina de biogás implantada por ela mesma no aterro sanitário CTR Vale do Aço, de 1 MW, também no modelo de geração distribuída.
Outros projetos importantes foram a sociedade entre a cooperativa agropecuária Castrolanda e o grupo Unium, do Paraná, que inauguraram em abril duas miniusinas que totalizam 1,43 MW de potência instalada, a partir de biogás gerado da digestão de dejetos suínos e de resíduos da produção de leite e de batatas. Essas duas novas usinas paranaenses – Piraí do Sul e Castro – estão preparadas para purificar o biogás e transformá-lo em biometano, utilizando tecnologia que também permite a separação do dióxido de carbono, presente no gás, para aproveitamento em outros usos.
Por fim, dentre os vários projetos de 2020, outro destaque fica por conta da primeira usina híbrida a biogás e energia solar, da empresa EnerDinBo, em Ouro Verde do Oeste (PR), que opera com 2 MW de potência para gerar eletricidade a partir de biogás capturado na coleta de 700 t/dia de dejetos suínos de 40 suinocultores da região. Mais 500 kWp foram acrescentados com a partida neste ano de uma miniusina solar, que funciona no mesmo terreno e que complementa a geração, compartilhando a conexão com a rede.
Cenário favorável
Além do potencial que começa a ser mais aproveitado para biogás, o presidente do Cibiogás, Rafael González, também identificou no ano passado uma aceleração nos projetos por conta das incertezas que a revisão da resolução da geração distribuída 482 provocou no setor. Segundo disse à Brasil Energia, muitos investidores anteciparam as iniciativas, com medo do possível fim dos incentivos para a GD devido à revisão da norma da atividade.
Independentemente da pressa dos investidores em não perder os incentivos, o que pode ter influenciado parte do comportamento do mercado em 2020 é a tendência de crescimento firme dos projetos, por conta de movimentos em curso no setor. Vários exemplos ocorrem, principalmente para aproveitar o potencial de uso do biometano, a versão purificada do biogás para uso como biocombustível. Segundo a ABiogás, o biometano potencial do país pode suprir 70% da demanda nacional de diesel (equivalente a 39 bilhões de litros).
Há, para começar, chamadas públicas de compra de biometano por distribuidoras de gás, como a lançada pela gaúcha Sulgás em agosto do ano passado, para compra de 22 mil m3/dia em três lotes, e uma outra, chamada conjunta, de março deste ano, feita por distribuidoras do Centro Sul (Compagás, MSGás, Gás Brasiliano, SCGás e Sulgás) e que, apesar de ser para aquisição de gás natural (6 milhões de m3/dia até 2024), aceitará propostas flexíveis de suprimento para projetos de biometano na região Sul.
Além disso, também chama a atenção do mercado como ótimo sinal do interesse de investidores a chamada da Golar Power para aquisição de 5 milhões de m3 por dia de biometano, que serão utilizados para a empresa comercializar o combustível na versão liquefeita (BioGNL) em aplicações na indústria ou comércio. A chamada está em andamento.
Para o presidente da Abiogás, Alessandro Gardemann, a chamada da Golar é uma prova de que o mercado ganha força. Segundo ele, quando a Abiogás divulgou há alguns anos a meta de chegar a 30 milhões de m3 dia até 2030, houve muitos questionamentos, apesar do volume projetado equivaler a só 25% do potencial do mercado de biometano. “Mas agora só um player está disposto a comprar quase 20% da meta de 2030”, afirma.
Outro sinal favorável para o setor é o RenovaBio, a política nacional de biocombustíveis que promete incentivar mais projetos de biogás, principalmente em indústrias sucroenergéticas que, ao aproveitarem os resíduos para a geração do gás renovável, aumentarão suas notas de eficiência energética do programa e, por consequência, poderão emitir mais créditos de descarbonização (Cbios).
Com esse cenário, para Gardemann, o setor começa a entrar de fato no mainstream da matriz energética. Ele acredita que, a partir deste ano, haverá a consequência do interesse crescente de vários investidores, sejam os estratégicos, fundos ou players, que vão liderar projetos tanto para o setor elétrico quanto para a substituição de diesel em frota de veículos pesados. De forma geral, de acordo com Gardemann, pesa muito a favor o fato de o biogás e biometano não serem reajustados pelo dólar, o que traz mais confiança em momentos de turbulência econômica, favorecendo a estruturações dos projetos.
O presidente da Abiogás entende também que os projetos para gerar eletricidade ganham competitividade com a introdução do PLD horário em 2021, já que a fonte tem grande capacidade de armazenamento para aproveitar os melhores horários de venda para despachar. Nesse sentido, o executivo espera que o biogás entre no leilão regulado previsto para geração de energia a partir de resíduos sólidos urbanos, cujas diretrizes devem sair em breve, e defende a participação da fonte em leilões regulados de gás natural.
Pioneirismo
Um exemplo de projeto com potencial de abrir mais caminho para o biogás e o biometano ocorre no interior de São Paulo, em uma sociedade entre a concessionária GasBrasiliano e a Usina Cocal, de Narandiba. Trata-se da construção da primeira rede de gasoduto do país de suprimento dedicado de biometano para uso industrial, comercial e residencial nas cidades de Presidente Prudente e Narandiba.
O projeto é fruto de investimento de R$ 160 milhões, sendo R$ 30 milhões da GasBrasiliano para construção de uma rede de distribuição de 68 quilômetros e R$ 130 milhões da Cocal, que implementa um sistema completo de produção de biogás a partir de vinhaça, palha e torta de filtro, unidade de purificação para gerar o biometano e outra para geração de eletricidade.
Segundo disse à Brasil Energia o presidente da GasBrasiliano, Alex Sandro Gasparetto, o projeto do gasoduto está em fase de licitações para aquisição dos materiais e de contratação de serviços de construção e montagem, com previsão de início de obras em agosto. A conclusão da instalação da rede é prevista para janeiro de 2022 e, a partir daí, espera-se a licença de operação e comissionamento da rede, período que deve seguir até julho, quando está prevista a entrada em operação. A agência reguladora paulista, a Arsesp, já aprovou o projeto em dezembro de 2020 e em seguida referendou também a minuta do contrato de compra e venda de biometano entre as duas empresas.
Para o início da operação comercial, de acordo com Gasparetto, estão em fase final de contratação os três primeiros clientes da rede, que serão duas grandes indústrias da região e um posto de GNV em Presidente Prudente. Depois dessa fase, a distribuidora começa a prospectar novos mercados, como indústrias menores, comércios e residências. Com os três primeiros clientes, considerados âncoras do projeto do gasoduto isolado, o volume inicial fornecido será por volta de 8 mil m3 por dia. Como a planta de biometano da Usina Cocal, que no momento já está com mais de 70% das obras concluídas, terá capacidade para chegar até 24 mil m3 por dia, nos meses subsequentes a GasBrasiliano pretende expandir a carteira de clientes para o consumo do excedente.
Replicar é possível
Na visão do presidente da concessionária de gás do noroeste paulista, há ainda potencial na sua área de concessão para replicar o projeto. Segundo ele, porém, para a viabilização as características precisam ser semelhantes ao projeto com a Cocal, já que Presidente Prudente está muito distante do Gasoduto Brasil-Bolívia (Gasbol), a cerca de 140 km, e a usina está próxima, a 60 km da cidade. “O projeto fica pelo menos a metade do preço do que seria se conectássemos a cidade com o Gasbol”, disse.
Na área concessão da GasBrasiliano, Gasparetto ressalta que há várias cidades importantes longe do Gasbol, caso de São José do Rio Preto, e que contam com usinas sucroenergéticas nos seus entornos. Segundo ele, essas características farão com que a empresa considere a replicação dos projetos de sistemas isolados em outras cidades.
Além disso, favorece também o planejamento de implantar novos projetos de sistemas isolados o fato de o preço do biometano no interior paulista, segundo o executivo, ser muito competitivo em comparação com o gás natural. Isso porque o custo de produção para produzir biogás e biometano a partir dos resíduos sucroenergéticos, com excedente muito grande e uma biomassa de alta qualidade, é muito inferior ao se comparar com outras fontes, como aterros sanitários ou resíduos agrossilvopastoris.
Nem mesmo a possível queda de preços do gás natural por conta da implementação da nova política federal para o gás seria um problema para viabilizar os projetos de biometano, na opinião de Gasparetto. Para ele, com o previsto maior número de projetos de biogás e a evolução tecnológica do setor, o custo do biometano deve cair. “Hoje o biometano já é muito competitivo contra o gás natural na nossa região e com certeza isso vai se manter”, disse.
E a competitividade do biometano não seria apenas para sistemas isolados, em regiões distantes dos gasodutos de gás natural, mas também para conectar a usina na própria rede existente, misturando o gás renovável como o fóssil, o que já é regulamentado e permitido pela ANP. Não à toa, o maior projeto atual no país, a GNR Fortaleza, em Caucaia, no Ceará, injeta na rede da distribuidora de gás 90 mil m3 por dia de biometano gerado a partir de biogás de aterro.
Na opinião de Gasparetto, aliás, a injeção do biometano nos gasodutos é o cenário ideal, já que a própria rede de gás natural funcionaria como backup em caso de desabastecimento. Já nos projetos isolados, como no de Presidente Prudente, existe a necessidade de instalação de estação de descompressão de GNC (gás natural comprimido) para suprir qualquer falha no suprimento do biometano pela usina, e até mesmo para paradas de manutenção da rede.
Para ele, para se projetar um mercado competitivo do biometano, com diversidade de ofertantes e papel importante na matriz, o ideal seria as usinas estarem conectadas à rede de distribuição. No momento, aliás, a GasBrasiliano estuda com a empresa Zeg Biogás, da Capitale Energia, quatro projetos, dentre os quais alguns contemplam conexão direta de usinas na sua rede de gasodutos. Segundo o dirigente, há de 50 a 60 usinas sucroalcooleiras a menos de 30 quilômetros da rede de distribuição da GasBrasiliano.
A própria Zeg Biogás também anunciou no fim de 2020 uma parceria com a Golar Power, para viabilizar a distribuição de gás liquefeito de biometano. Para isso, já tem acordo com seis usinas sucroalcooleiras, sendo uma delas a Cruz Alta, do grupo francês Tereos, em Olímpia (SP), já em construção e que deve começar a produzir biogás de vinhaça em abril e energia em agosto, com uma unidade também para purificação e transformação em biometano.
Os outros cinco projetos da Zeg com usinas, segundo afirmou à Brasil Energia o gerente de desenvolvimento de negócio, Ricardo Blandy, sairão no próximo ano e terão capacidades diferentes para produzir biometano, entre 50 mil a 80 mil m3 por dia, e de 1 MW a 5 MW de energia elétrica. Sinais de um futuro virtuoso para o mercado de biogás.