Crise e oportunidade: a chance de crescimento do biogás na matriz elétrica brasileira

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Vinte anos após o racionamento de 2001, o Brasil está à beira de outra crise de abastecimento elétrico. Ainda que nestes 20 anos novas fontes além da hidreletricidade tenham ganhado mais relevância na matriz elétrica do país, regimes hidrológicos cada vez mais irregulares e reservatórios com menor capacidade de armazenamento nos trouxeram novamente a uma situação dramática. Entretanto, seguindo o velho clichê que diz que crises podem ser oportunidades, a nova ameaça surge como um “empurrão” para deslanchar o setor de biogás no Brasil como combustível capaz de garantir energia elétrica firme e descentralizada.
 
De acordo com levantamento da Associação Brasileira do Biogás (ABiogás), se todo o potencial de biogás fosse  aproveitado, seria possível garantir a instalação de nada menos que 19 gigawatts termelétricos, mais de duas vezes os 8 GW a gás natural incluídos na Medida Provisória 1031/2021, da privatização da Eletrobras, porém com combustível 100% renovável.
 
Em um horizonte de cerca de dez anos, as projeções avaliam que seria possível instalar sem grandes dificuldades cerca de 5 GW em capacidade abastecidos com biogás, de acordo com Paulo César Cunha, consultor da FGV Energia e sócio diretor da SEMPI Consultoria. Isso representa um consumo diário de 10 milhões de m3 de biogás, ou 3,65 bilhões de m3 anuais.
 
Entretanto, a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) projetou para a fonte no Plano Decenal de Energia (PDE) 2030 a instalação de tímidos 60 MW anuais, oriundos apenas do setor sucroenergético, o que somaria 600 MW em 2030. Tal valor representa 12% do potencial estimado por Paulo Cunha, e apenas 5% da expansão de 12 GW de termelétricas a gás natural prevista pelo documento da EPE.

 

Incentivo, precificação e transversalidade, as chaves para o biogás
 
O que falta, então, para que o biogás seja enfim visto como solução real para garantir energia elétrica e reduzir nossa dependência de São Pedro e suas chuvas? De acordo com especialistas ouvidos pela ABiogás News, o mercado tem papel fundamental nessa expansão. Mas, para isso ocorrer, é fundamental que o governo estabeleça políticas públicas que considerem corretamente os atributos do biogás, o que inclui outras áreas além do setor elétrico brasileiro. Com isso, o planejamento energético poderá considerar a fonte da forma correta, promovendo, inclusive, leilões dedicados, como foi feito com a energia eólica e solar.
 
“Se tivéssemos o biogás como fonte estrutural e sistemática, não estaríamos vivendo o sufoco que estamos vivendo agora. Mas a crise ajuda a colocar senso de urgência na modernização do setor elétrico brasileiro. É a oportunidade de dar os sinais de preço corretos ao mercado, de forma a desenvolver a fonte”, avalia Paulo César Cunha, da FGV Energia/SEMPI.
 
No Seminário Técnico da ABiogás de 2021, realizado em junho e que tratou dos atributos do biogás (assista aqui), Cunha mencionou a necessidade de que sejam reconhecidos corretamente os benefícios do energético. Como parte de seus atributos elétricos, o especialista citou a modulação, ou seja, a possibilidade de acionar termelétricas a biogás rapidamente e sem maiores impactos ao sistema. Além disso, reforçou que essas plantas podem funcionar como “usinas virtuais”.
 
“O conceito de usina virtual é uma forma de agregar vários pequenos geradores. Em vez de negociar com cada um desses geradores, o que seria uma tarefa difícil, cria-se um estímulo no planejamento para que esses geradores se comportem como uma usina de grande porte, de forma agregada. Ou seja, você tem virtualmente uma usina grande se você der sinais corretos de preço para que esses geradores gerem de forma unificada, garantindo energia ao sistema”, explica ele.
 
A correta precificação é outro ponto fundamental apontado por Cunha para garantir a expansão do energético. Por isso é crucial que a modernização do setor elétrico, que está em discussão desde 2017, passe a valorar corretamente os atributos de cada fonte. E isso representa analisar não apenas os impactos ambientais, mas também os sociais, diz a advogada Maria João Rolim, do escritório Rolim, Viotti, Goulart, Cardoso Advogados.
 
Para a especialista, é preciso que se reconheça a transversalidade do biogás. Significa dizer que a avaliação sobre o energético deve ir além dos benefícios que traz ao setor elétrico brasileiro e incluir outros segmentos econômicos, como o agronegócio, o saneamento básico e mesmo o setor de transportes, se pensarmos na substituição do diesel fóssil pelo biometano.
 
“Numa visão horizontal, o biogás é vantajoso por ser uma fonte de energia firme e cuja geração pode ser instalada próxima ao consumo. Mas é fundamental considerar a vocação transversal do energético, já que ele não se atém apenas ao setor elétrico. A valoração de cada atributo, que deve considerar as externalidades, é que vai ditar o uso de cada fonte. Por isso, no caso do biogás, o olhar não pode ser feito apenas pelo Ministério de Minas e Energia, já que o energético envolve outros setores. O biogás pode ser comandado pela pauta energética, mas deve ser olhado também pela ótica do saneamento, da infraestrutura, da agricultura, da política industrial.”
 
Maria João defende o discurso do governo de não privilegiar fontes na expansão do sistema elétrico brasileiro, deixando essa decisão nas mãos do mercado. Entretanto, a advogada frisa que é tarefa governamental estabelecer as políticas públicas que vão guiar o planejamento e, portanto, a forma e a velocidade dessa expansão. Desse modo, pode-se reconhecer as diferenças entre as diversas fontes e agir em uma ou outra direção para garantir uma maior diversificação. E assim também se dá a correta precificação para o mercado agir.
 
“É na escassez que conseguimos ver o real valor dos recursos. Por isso é um erro não ter tudo na mesa no momento do planejamento. O modelo indica que devemos usar água quando, no fundo, ele não tem todas as informações que precisa para tomar essa decisão. Continuamos usando o mesmo modelo quando tínhamos 90% de hidreletricidade na matriz e hoje esse percentual já está em torno de 60%.”
 
Uma solução para a expansão do energético na matriz apontada por Maria João é a promoção de leilões de energia dedicados à fonte. A solução é compartilhada por Larissa Rodrigues, gerente de Projetos e Produtos do Instituto Escolhas.
 
“Quando falamos do sistema centralizado, que é importante para gerar investimentos na indústria, é importante haver leilões. E quando temos leilões dedicados, é uma estratégia para incentivar a implantação da tecnologia. De certa forma, o biogás já rompeu a barreira do investimento pioneiro nas regiões Sul e Sudeste, mas isso não ocorreu em outras regiões do país. E o investimento pioneiro sempre acaba absorvendo mais riscos, mas, com o desenvolvimento da cadeia de suprimentos, capacitação, tecnologia e equipamentos, isso vai sendo barateado ao longo dos anos. Por isso é tão importante os leilões, que podem garantir contratos de longo prazo”, detalha Larissa.

 

As oportunidades com a garantia de potência além da energia
 
Durante o Seminário Técnico da ABiogás de 2021, o superintendente da Diretoria de Estudos de Energia Elétrica da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Thiago Ivanoski, mostrou que a biomassa representou apenas 8% da geração elétrica brasileira em 2019 – menor que a participação eólica, que foi de 9%. E dentro do segmento de biomassa, a participação do biogás foi bastante tímida: apenas 2% dos 52 TWh à base de biomassa gerados naquele ano.
 
Apesar disso, Ivanoski ressaltou a expansão da fonte na geração elétrica em 2020, de acordo com dados do CIBiogás. O crescimento foi de 22%, com a implantação de 148 novas plantas. Com isso, a produção de biogás atingiu 2,2 bilhões de m3 no ano passado, e o país totalizou 675 plantas do combustível. “Existe um potencial muito forte nesse mercado”, reforçou ele.
 
Segundo o especialista, a mudança no perfil do setor elétrico brasileiro, a partir de uma maior inserção de outras fontes na matriz de energia elétrica, vem alterando também os critérios de contratação de projetos para garantir o abastecimento. Neste sentido, o PDE 2030, elaborado pela EPE, indicou a necessidade de se acoplar a contratação de energia e de potência, sobretudo a partir de 2026. E o biogás pode aproveitar essa oportunidade de expansão.
 
“Vemos um incremento do volume de biogás no mercado, especialmente a partir do setor sucroenergético. A geração a biogás pode ser comercializada no mercado regulado, via leilões de energia, e no ambiente livre, ainda mais se considerarmos a tarifa horária. O setor elétrico, portanto, conta com a participação do biogás para a expansão do sistema”, frisou Ivanoski.
 
As qualidades do biogás para o setor foram reforçadas no seminário por Alexandre Zucarato, diretor de Planejamento do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). “Sua controlabilidade, associada ao fato de ser uma fonte renovável e de estar próxima ao centro de carga vai criar um benefício imenso. Esses atributos são o que precisamos no setor elétrico.”
 
Zucarato explicou que hoje 75% do atendimento da carga são feitos por fontes inflexíveis. E isso preocupa, porque se torna cada vez mais complicado encaixar as diversas fontes de energia elétrica no perfil de carga. Por isso, ele reforçou a necessidade de que haja sinais de preços adequados para que as fontes que não operam de forma centralizada – como no caso do biogás – passem a modular sua operação, auxiliando o ONS a atender a carga.
 
O diretor do ONS ressaltou que modelos de negócios que favoreçam o atendimento à carga podem atrair pequenos geradores elétricos, característica marcante dos produtores de energia à base de biogás. E, assim como Cunha, exaltou a qualidade das usinas virtuais. “O papel dos agregadores e das usinas virtuais é peça-chave para que todos esses recursos distribuídos consigam se coordenar e atender a um sinal de ‘atacado’ (sistema centralizado).”
 
A necessidade de mais potência também foi ressaltada por Zucarato como uma boa oportunidade para a geração a biogás. “Precisamos ter os recursos disponíveis, tanto a energia como a potência. O sistema tem de estar adequado, com ativos suficientes. Precisamos de uma combinação de todas as fontes para garantir uma operação segura”, explicou.

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