Desde outubro de 2020, com a entrada em operação comercial da primeira planta de biogás viabilizada em um leilão de energia – a UTE Bonm (SP – 21 MW), da Raízen – a fonte tem vislumbrado uma perspectiva de viver um ciclo de crescimento e investimentos. O combustível, que permite transformar um passivo ambiental em componente energético, deverá ter um impulso ocasionado pela modernização do setor elétrico e pelos novos marcos regulatórios do gás e do saneamento.
O presidente da Associação Brasileira do Biogás, Alessandro Gadermann, classica o ano de 2021 como de execução, uma vez que os regramentos estão prontos e que há muitos interesses e oportunidades para desenvolver o mercado de biogás. A pauta de descarbonização e as práticas ESG aliadas a vantagens como a geração de empregos e a consequente destinação de um resíduo para geração de energia ou combustível para transporte. “Existe muito interesse de investidor, existe muito potencial no Brasil. Entendemos que, de fato, é a hora do Biogás. Está acontecendo, está todo mundo olhando com afinco para o negócio”, arma.
Gadermann gostaria que os projetos de biogás para geração de energia estivessem enquadrados como gás tradicional e não como biomassa. Segundo ele, o biogás tem características operacionais similares as das térmicas de gás natural, com a vantagem de a molécula não estar atrelada ao dólar o que reduziria eventuais impactos nas contas de energia. Para o presidente da ABiogás, há um trabalho de convencimento que deve ser feito junto ao governo.
No caso do gás, o novo marco vai permitir a inserção no mercado de pequenos e médios ofertantes que poderão incrementar o mercado livre de gás. A malha de gasodutos, baseada no litoral, o biogás também poderá colaborar com a interiorização e aumento da capilaridade do gás no país, aumentando a oferta. Criação da demanda e atração de investimentos regionais e substituição do diesel em frotas de veículos pesados e maquinário agrícola são outros benefícios que o biogás poderá acrescentar ao setor.
Para Rafael González, diretor-presidente do Cibiogás, será interessante ver como estados e distribuidoras de gás vão atuar para ter o insumo, dentro de uma visão de construção do biometano. Pela ausência de infraestrutura, novos negócios deverão surgir, que precisarão de um estofo contratual. Esse modelo todo cria novas condições, mas ele precisa dar segurança. Digo segurança, segurança contratual, jurídica do marco regulatório que permita o setor avançar um pouco mais”, avisa.
A lei equipara o insumo ao gás natural, resultando em mais segurança jurídica, previsibilidade e clareza nos papéis dos diferentes segmentos da cadeia. Para Rivaldo Moreira Neto, CEO da Gas Energy, a maior clareza quanto ao papel da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis na regulação de modais alternativos para o transporte de gás ou biometano é muito relevante para o segmento. Segundo ele, isso facilita as iniciativas de produção descentralizada, longe dos gasodutos, uma vez que o transporte via caminhão será mais simples.
O avanço e a consolidação do setor estão diretamente ligados ao envolvimento de mais agentes de outras cadeias de negócio com enorme potencial de produção de biogás, como aterros sanitários e vinhaça de cana, além do setor nanceiro. “O deslanche do setor depende muito do reconhecimento do potencial de os investimentos proporcionarem retorno adequado, mas o caminho é bastante promissor”, aponta Moreira Neto.
A Cocal anunciou em outubro do ano passado seu Projeto Biogás. A demanda de biogás no oeste paulista foi vista como uma oportunidade, assim como o incentivo do Programa RenovaBio que propõe redução de emissão de CO2. Está em curso a implantação de uma unidade em Narandiba, que deve estar pronta em abril deste ano. O biometano produzido será destinado à distribuidora de gás natural Gás Brasiliano. A capacidade de produção será de 33,5 milhões Nm³ de biogás. Com isso, a exportação de energia será de até 33,3 mil MWh/ano e a produção de biometano de 8,9 milhões Nm³/ano, cerca de 24 mil Nm3/dia.
Em julho do ano passado, foi sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro o novo marco legal do saneamento. A nova lei vai facilitar o investimento da iniciativa privada no setor. Com isso, as concessionárias poderão gerar receitas adicionais e o biogás gerado a partir do lodo ganha força.
Para Franceli Jodas, sócia da KPMG, a mudança para um ambiente competitivo levará as concessionárias para além de uma busca pela melhoria operacional, a pensar na geração dessas novas receitas partindo do ativo. É aí que o biogás se encaixa, porque com metas de tratamento estipuladas, será preciso dar um destino para o material tratado, que poderá ser convertido em biogás.
Segundo ela, nestes primeiros anos do novo marco as concessionárias estarão mais voltadas para a melhoria operacional. Mas a sócia da KPMG não duvida que todas já tenham criado um departamento de busca de receitas adicionais. “Estão buscando formas de melhorar a eciência do projeto com novas receitas, seja por biogás, energia solar ou outros tipos de compartilhamento de infraestrutura, como telecomunicações”, comenta.
No Paraná, na Estação de Tratamento de Esgoto Belém, da concessionária estadual Sanepar, está em operação a CS Bioenergia, de 2,8 MW. A usina teve investimentos de R$ 62 milhões. A energia gerada é usada pela Sanepar. Sergio Vidoto, que atuou na concepção desse projeto e hoje está na Oxiem, também vê o biogás em um bom momento de atração de projetos e investimentos. “O setor está em plena expansão, há uma demanda muito grande. esse mercado está se mostrando muito atrativo”, aponta.
A biodigestão trata o lodo, considerado um problema para todas as estações de esgoto no país, e gera biogás que vira energia elétrica, uma possível receita acessória à atividade de tratamento de esgoto. De acordo com Vidoto, o novo marco vai destravar contratos que antes não conseguiam ir à frente devido a entraves no prazo de fornecimento e no tempo de retorno financeiro. “Com o novo marco, as empresas de saneamento podem fazer acordos para construir plantas e fazer tratamento de forma mais fácil. No próximo ano vamos ver mais anúncios como os da CS Bioenergia”, prevê.
Vidoto agora atua na Oxien, que em breve lançará uma usina modular para pequenos volumes de resíduos. Um produtor de suínos que tenha em média uma tonelada de dejetos poderá instalar dois biodigestores que vão gerar uma carga que pode chegar a 75 kW de energia elétrica ou 30 m³ de biogás que pode ser puricado, produzindo 18 m³/hora de biometano. O púbico alvo dessa usina são os suinocultores e cidades com população de até 50 mil habitantes.
A Nota Técnica “Panorama do Biogás no Brasil 2020”, produzida pelo Cibiogás mostra que em 2020 foram 148 novas plantas no país, um crescimento de 22% na comparação com 2019. São 675 plantas, sendo que 638 encontram-se em operação para fins energéticos. A principal fonte de substrato utilizada para produção de biogás por biodigestão no Brasil é a agropecuária, representando 79% das plantas em operação. Por outro lado, sua contribuição no volume total de biogás é de apenas 11%. Já plantas que processam resíduos sólidos urbanos ou efluentes de estações de esgoto respondem por 9% das plantas em operação, porém, são responsáveis por 73% do biogás produzido no país.
A geração de energia elétrica é o maior destino do biogás, com 85% das plantas, consumindo 73% do volume de biogás produzido. O biometano, que é apenas 1% das plantas, usa 19% do insumo, saindo do patamar de 3% registrado no ano anterior.
O financiamento ainda é considerado um desafio para a fonte. Em março, foi anunciada a seleção pelo Global Innovation Lab for Climate Finance do Fundo Garantidor para Projetos de Biogás. O fundo foi apresentado pela ABiogás e pretende fornecer garantias financeiras exigidas por bancos privados e, assim destravar cerca de US$ 100 milhões em investimentos, valor capaz de financiar até 30 projetos. A ideia foi colocada pela primeira vez no Plano Nacional para o Biogás e Biometano, elaborado pela associação em 2014. O fundo ainda não é considerado um produto de prateleira.
Antes, em fevereiro, foi lançado o BNDES Gás, um programa de soluções nanceiras para estímulo a investimentos em biogás e gás natural. Ele é composto por linhas de crédito voltadas à ampliação da infraestrutura e da oferta de gás, do uso industrial e termelétrico do produto e da utilização em veículos pesados. No mesmo mês, o banco aprovou dois financiamentos com recursos do Fundo Clima para produção de biogás no interior de Goiás e no Paraná. Foram R$ 13,3 milhões à Albioma Codora Energia, em Goiás, e outros R$ 10,1 milhões para a Copacol, do Paraná.
A Albioma vai implantar uma linha de produção de biogás a partir da vinhaça, que vai aumentar a produção de biogás da usina em 8,7%. Parte da energia poderá ir à usina Jalles Machado, que fornecerá a matéria-prima. A Copacol vai usar a energia para as suas próprias instalações, dando um destino a resíduos poluentes.
Mas se os novos regramentos de Gás, Energia e saneamento trazem boas perspectivas, um outro tema que está sendo debatido traz atenção para o biogás. A revisão das regras da Geração Distribuída, que saiu do âmbito da Agência Nacional de Energia e deve ser ratificada em projeto de lei na Câmara dos Deputados, suscita forte debate desde o ano passado. Apesar das discussões estarem baseadas os equipamentos solares fotovoltaicos, a GD por biogás é exitosa, com ênfase no campo. Na suinocultura, o uso do biodigestor traz a autossuficiência energética para o produtor.
Para o presidente da ABiogás, no aspecto amplo é importante uma regra que não prejudique a indústria. Segundo Gardemann, a garantia de uma regra de transição suave que atenda a todos é fundamental. Sobre a GD por biogás, embora ela responda apenas por 66 MW ou 1,5%, sua relevância e vantagens não são minimizadas por ele. Aspectos como não ser intermitente, gerar na base, no horário de ponta e no fim da linha não foram esquecidos. “O Biogás contribui de maneira ativa em atributos, atributos individuais tem que ser reconhecidos dentro da nova política que está sendo construída”, avisa. A associação tem participado da discussão sobre as novas regras. No último dia 24 de fevereiro, a ABiogás assinou em conjunto com onze associações e entidades do setor elétrico, um manifesto que expressaram descontentamento em relação à uma proposta preliminar apresentada pela Agência Nacional de Energia Elétrica.
Considerando as tendência sugeridas pela Aneel muito drásticas para a GD, o gestor da área de planejamento energético do Cibiogás Breno Carneiro vê no projeto de lei do deputado Lafayette Andrada (Republicaos- MG) que tramita no Congresso Nacional um efeito amenizador de possíveis impactos. Ele conta que a GD por biogás, por precisar do substrato, tem custos diferentes e uma dinâmica de payback, instalação e operação completamente diferentes da solar e pontua aspectos como o da importância para os setores sucroalcoleiro e do agronegócio. Esses setores são pujantes na economia nacional e o biogás permite a potencialização do seu crescimento.
“O PL já faz uma distinção para fontes despacháveis. Elas já entram nas regras de transição, o que traz alívio para os projetos”, explica. Mesmo assim, Carneiro vê impactos na viabilidade dos sistemas, já que nem todos os estados terão o mesmo tratamento tributário. Breno pede que nas discussões sejam observados os atributos de cada fonte, já que o benefício ambiental do biogás tem forte apelo.
A insegurança jurídica com a mudança na GD é temida por Sergio Vidoto. Ele tem visto uma corrida na execução de projetos de forma a não serem alcançados por regras mais rígidas que as atuais. Para ele, apenas após a definição da nova regulação do tema é que será possível medir o ritmo de investimentos em sistemas de GD a biogás. “É provável que se houver uma taxação maior sobre a GD vai sim repercutir em redução de investimentos”, adverte.
O potencial nacional de produção de biogás bruto calculado pela ABiogás, é de 82,58 bilhões de m³/ano, considerando os setores sucroenergético, saneamento, proteína animal e produção agrícola. Na comparação com o atual cenário de produção de biogás brasileiro de 1,83 bilhão de m³/ ano, constata-se que apenas 2% do total é aproveitado.