O recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês), divulgado no início de agosto, mostrou que a situação climática do planeta é ainda pior do que se imaginava. O documento aponta que o aquecimento global está ocorrendo de forma mais rápida do que seprevia, e que o acréscimo de 1,5º C na temperatura da pré-era industrial irá ocorrer dez anos antes do previsto, em 2030. Com isso, os especialistas acreditam que algumas mudanças do clima – como as altas temperaturas registradas recentemente no verão do Hemisfério Norte, as catástrofes provocadas por precipitações cada vez mais intensas em todo o mundo e a irregularidade nas chuvas no Brasil – possam se tornar irreversíveis.
Entretanto, se o dióxido de carbono é o grande vilão, desta vez os cientistas chamaram atenção para o metano (CH4), que potencial causador de efeito estufa cerca de 20 vezes superior ao CO2. Mesmo que as Organizações das Nações Unidas (ONU) calculem que somente 30% do aumento da temperatura desde os tempos pré-industriais tenham sido causados pelo metano, tamanho poder de estrago acendeu o sinal de alerta, justamente num momento em que o gás natural, cujo principal elemento é o CH4, é apontado como o combustível da transição energética global.
“A estabilização do clima exigirá reduções fortes, rápidas e sustentadas nas emissões de gases de efeito estufa e alcançar emissões líquidas zero de CO2. Limitar outros gases de efeito estufa e poluentes do ar, especialmente o metano, pode trazer benefícios tanto para a saúde quanto para o clima”, disse Panmao Zhai, co-chair do Grupo de Trabalho 1 do IPCC, responsável pelo mais recente documento.
Além de sua presença no gás natural de origem fóssil, o metano preocupa por sua produção a partir das atividades humanas. Gerado naturalmente na decomposição de material orgânico, o gás é emitido em aterros sanitários e lixões, estações de tratamento de esgoto e na produção agropecuária – ou seja, um outro efeito das ações do homem no planeta além da exploração de combustíveis fósseis como o carvão mineral, o petróleo e o próprio gás natural. E é aqui que o biogás e o biometano entram como coringas para a solução climática.
“Quando defendemos o aproveitamento do biogás e do biometano, não tratamos apenas de sua importância para a produção de energia elétrica firme ou como substituto de combustíveis fósseis. Estamos falando também de reduzir drasticamente o seu impacto como gás de efeito estufa. Converter um resíduo gerado a partir de processos naturais não apenas em ganho financeiro, mas também em ganho ambiental”, salienta o presidente da ABiogás, Alessandro Gardemann.
Os impactos do metano de origem orgânica são consideráveis. De acordo com estudo do Departamento de Economia do Sindicato Nacional das Empresas de Limpeza Urbana (Selurb) divulgado em 2019, somente os lixões brasileiros, somados à queima irregular de resíduos, responderam por emissões de cerca de 6 milhões de toneladas de CO2. O volume equivale à emissão anual de 3 milhões de carros movidos a gasolina – 1,5 vezes a frota de automóveis de toda a Região Norte (1,9 milhão), ou 40% da frota de carros do Nordeste (40%), em maio de 2021, segundo dados do Ministério da Infraestrutura.
IEA: potencial de 644 bilhões de metros cúbicos aproveitáveis em todo o mundo
Em março de 2020, a Agência Internacional de Energia (IEA, sigla em inglês) lançou o documento “Outlook for biogas and biomethane: Prospects for organic growth”. No texto, a agência apontou que “o biogás e o biometano têm o potencial de apoiar todos os aspectos do SDS (sigla em inglês para Grupo Internacional de Estratégia de Desenvolvimento Sustentável, da ONU), que traça um caminho totalmente consistente com o Acordo de Paris, mantendo o aumento nas temperaturas globais ‘bem abaixo de 2 ° C … e envidando esforços para limitá-lo a 1,5 ° C’, e atende aos objetivos relacionados ao acesso universal à energia e ao ar mais limpo”.
Dados relativos a 2018 apresentados pela IEA no relatório mostram que o potencial global de produção de biometano naquele ano era de 730 megatoneladas de óleo equivalente (Mtoe) – cerca de 805 bilhões de metros cúbicos –, e o potencial de biogás, 570 Mtoe (611 bilhões de m3). Naquele mesmo ano, porém, a produção total foi de apenas 35 Mtoe – 37,5 bilhões de m3. No entanto, a agência calculou que cerca de 600 Mtoe (644 bilhões de m3) poderiam ser produzidos no planeta de forma sustentável, o que reforça o desperdício energético e também o impacto das emissões.
Para calcular os números, o documento da IEA considerou, para o biogás, 17 tipos individuais de resíduos, agrupados em quatro categorias: resíduos de culturas agrícolas, esterco animal, fração orgânica de RSU e lodo de esgoto. “As vias de produção de biogás variam por matéria-prima e região e contam com as seguintes tecnologias principais: biodigestores (incluindo digestores centralizados em pequena, média ou grande escala e digestores descentralizados em escala doméstica), sistemas de recuperação de gás de aterro e estações municipais de tratamento de águas residuais”, explica. Já a produção de biometano considerou duas correntes: a purificação do biogás e a gaseificação de biomassa.
Dos 600 Mtoe potenciais apontados pela agência, cerca de 30% seriam oriundos de países em desenvolvimento da Ásia. Outros 20% viriam das Américas Central e do Sul – com destaque para o Brasil, pelos “grandes volumes de resíduos de milho e cana-de-açúcar provenientes de suas indústrias sucroalcooleiras”, menciona o documento.
No Brasil, a solução vem do campo
A menção da IEA é comprovada pelo mapa do potencial do biogás da ABiogás, que lista um potencial total de 44,1 bilhões de Nm3 anuais a partir de quatro setores econômicos (sucroenergético, produção agrícola, proteína animal e saneamento). O mapa aponta o setor sucroenergético brasileiro como o maior manancial para o combustível no país.
Pelos cálculos da associação, o segmento seria capaz de produzir anualmente 21,1 bilhões de Nm3 de biogás. Outro segmento de destaque apontado pela ABiogás é o de proteína animal, que geraria 14,2 bilhões de Nm3 por ano.
Somados aos 6,6 bilhões de Nm3 anuais de biogás que podem ser aproveitados na produção agrícola do país, o Brasil poderia, portanto, gerar 41,9 bilhões de Nm3 de biogás anualmente somente com o aproveitamento dos resíduos de sua produção agropecuária – que é uma das maiores do mundo.
Se o campo se destaca nas possibilidades mapeadas no país, o meio urbano ainda é a maior fonte de desperdício do potencial do biogás e do biometano. Embora a ABiogás calcule em 2,2 bilhões de Nm3 por ano o potencial de produção do saneamento básico, o cenário nacional é desafiador. Afinal, de acordo com o Instituto Trata Brasil, 49% do esgoto gerado pelos brasileiros não são tratados.
Em relação aos resíduos sólidos urbanos (RSU), a correta disposição também caminha a passos lentos. Cerca de 40% dos RSU (29 milhões de toneladas) ainda têm destinação inadequada, fora de aterros sanitários, segundo levantamento da Abrelpe relativo ao ano de 2019.
Cerca de 50% dos RSU são formados por fração orgânica, e os resíduos mais comuns usados na biodigestão podem gerar entre 25 e 800 Nm3 por tonelada, de acordo com a ABiogás. Sendo assim, as 14,5 milhões de toneladas de lixo orgânico que tiveram destinação inadequada no Brasil poderiam ter gerado de 362,5 milhões a 11,6 bilhões de Nm3 de biogás. Além do dinheiro literalmente jogado no lixo, tudo isso foi parar na atmosfera, agravando ainda mais o efeito estufa.
Uma nova vertente para a transição energética
O alerta do IPCC sobre o metano joga luz sobre os efeitos da produção de alimentos e biocombustíveis para nosso consumo e da geração de esgoto e de lixo por nós. Entretanto, um outro viés para o maior aproveitamento do biogás e do biometano oriundos dessas atividades diz respeito à possibilidade de seu uso na substituição do gás natural fóssil, que, como já dito, vem sendo apontado como o combustível da transição energética.
“Temos a possibilidade de usar resíduos para evitar a retirada do metano preso em reservatórios geológicos, incluindo o que está associado ao petróleo. Se o gás natural é apontado por especialistas como o combustível da transição energética, não há motivo para que o biogás não assuma parte desse papel, já que será gerado a partir das atividades humanas habituais. . Aproveitar essa energia é a decisão mais acertada, já que o biogás está sendo produzido naturalmente e, quando não aproveitado, ele é emitido para atmosfera, agravando ainda mais o efeito estufa ”, reforça a gerente executiva da ABiogás, Tamar Roitman.
É preciso lembrar que a Agência Internacional de Energia lançou, em maio, um relatório no qual recomendou a interrupção imediata da exploração e produção de novas jazidas de petróleo e gás natural, a fim de manter as mudanças climáticas sob controle.
“Acredito que o recado do IPCC foi claro: precisamos evitar que o metano resultante de nossa produção orgânica chegue à atmosfera e contribua com o aquecimento global. O biogás e o biometano já mostraram que são capazes de garantir uma energia elétrica firme e disponível à população no momento em que ela precisa de eletricidade, bem como um combustível mais limpo. Portanto, não se trata mais de pensar nesses energéticos como fontes alternativas, mas sim como elementos fundamentais na transição energética e nas necessidades ambientais do planeta”, sentencia Gardemann.